Diodoro Sículo narra a história de um deus dilacerado e disperso. Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao descrever uma época de seu passado, não sentiu em algum momento que uma coisa infinita se perdera?
Os homens perderam um rosto, um rosto irrecuperável, e todos queriam ser aquele peregrino (sonhado no empíreo, sob a Rosa) que em Roma vê o sudário de Verônica e murmura com fé: Jesus Cristo, meu Deus, Deus verdadeiro, era assim, então, o teu rosto?
Um rosto de pedra há em um caminho e uma inscrição que diz "O verdadeiro Retrato do Santo Rosto do Deus de Jaén"; se realmente soubéssemos como foi, seria nossa a chave das parábolas e saberíamos se o filho do carpinteiro foi também o Filho de Deus.
Paulo o viu como uma luz que o prostrou; João, como o sol quando resplandece em sua força; Teresa de Jesus, muitas vezes, banhado em luz tranqüila, e nunca pôde definir a cor de seus olhos.
Perdemos esses traços, como pode perder-se um número mágico, feito de cifras habituais; como se perde para sempre uma imagem no caleidoscópio. Podemos vê-los e ignorá-los. O perfil de um judeu no subterrâneo talvez seja o de Cristo; as mãos que nos dão umas moedas em um postigo talvez repitam as
que alguns soldados, certo dia, cravaram na cruz.
Talvez um traço do rosto crucificado espreite em cada espelho; talvez o rosto tenha morrido, se apagado, para que Deus seja todos.
Quem sabe não o veremos esta noite nos labirintos do sonho, sem saber disso amanhã.
Jorge Luis Borges, em "O Fazedor"
terça-feira, 18 de maio de 2010
quinta-feira, 6 de maio de 2010
E ser árvore é assim
"Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore. Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho."
"Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore porque fez amizade com muitas borboletas."
Manoel de Barros
"Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore porque fez amizade com muitas borboletas."
Manoel de Barros
domingo, 2 de maio de 2010
A Hora Última
No meu caixão, não cabem as minhas dores, a minha raiva, o meu rancor. Não cabem minhas saudades, minha inveja, meu medo... Não cabem minhas paixões, meus amores, meu amor.
Não cabem minhas manhãs, minhas noites, madrugadas - nunca existiram tardes para mim. Não cabem meu relógio de bolso, as horas, o tempo. Não cabe a eternidade, não cabe a hora última, nem o minuto final.
Não cabe minha respiração, não cabe meu oxigênio, meu gás carbônico, meu sufoco no peito. Não cabe a minha – vã – boa saúde, não cabe o meu sangue sem colesterol, não cabe o pulsar do meu coração, minha digestão.
Tampouco cabem minhas cefaléias, gastrites, artroses, neuroses, Arteriosclerose, esclerose... Não cabe minha miopia, meu astigmatismo, minha catarata... Minha cegueira. Não cabe minha hipocondria, meu fim por antecipação.
Nem meu nome cabe no meu caixão. Não cabe a minha genealogia, Minha família, meu lar, não cabem meus filhos, netos, bisnetos... Não cabe meu mapa genético, não cabem os aminoácidos do pecado original.
Não cabe minha cidade natal, meu choro inicial, a primeira queda. Não cabe no meu caixão, o primeiro poema, não cabe este poema, não cabe nenhum poema. Não cabem, num segundo, vinte e quatro fotos, não cabe uma foto, não cabe um segundo. Não cabe uma sala escura, no escuro do meu caixão. Não cabe o acender das luzes no final, o arriar dos panos.
A foice não cabe, a morte não cabe, a mortalha não cabe, no meu caixão. Não cabe a nudez, não cabe a defesa, não cabe a acusação. Nem a pureza cabe neste caixão.
Meu caixão mal comporta o meu corpo descomportado, mal comportado, corpo-não-eu... Meu caixão leva de mim aquilo que eu menos sou, mas que me trouxe até o caixão.
Não comporta minha sombra o meu caixão. Não comporta minha silhueta... Não comporta nem a mim. Meu caixão mal comporta o meu corpo descomportado, mal comportado, corpo-não-eu... Meu caixão leva de mim aquilo que eu menos sou, mas que me trouxe até o caixão.
Reinofy Duarte
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